"Quando se vê, já são
seis horas!
Quando
se vê, já é sexta-feira!
Quando
se vê, já é Natal…
Quando
se vê, já terminou o ano"
"Com essa citação desse tal de Quintana, na minha cadeira de
balanço no jardim de casa, começo o texto de hoje.
Quando menos se espera a semana passou, décadas escorreram
pelos meus dedos. Não sou mais aquela menina de 20 anos que começou a trabalhar
no hotel mais famoso da cidade, que voltava pra casa a pé e ouvia coisas do
tipo “que pão-de-ló”, “que bombonzinho”, frases assim.
Fico até pensando se
todas as cantadas tinham a ver com comida, era cada uma que eu ouvia...
Em falar em comida, lembro como se fosse semana passada, de
quando eu tinha 60cm de cintura e longas pernas; de quando me sentia bonita e
ia aos bailinhos da minha cidade.
E em um desses bailinhos conheci o homem que viria a ser meu
marido e pais dos meus filhos. Foram meses ele passando em frente a minha casa
e eu em frente a casa dele, a gente ainda não se falava, nossos olhos se
cruzaram no bailinho e achei que seria para sempre.
Fui muito feliz, sabe? Apesar de tudo, foi o único homem que
amei, foi quem me deu o maior presente de todos: meus filhos. Mas logo se
acabou. Meu Juvenal, quer dizer, ainda acho estranho não chamá-lo mais de “meu”,
Juvenal conheceu uma outra mulher, mais nova e espevitada, estava na moda essas
mulheres atrevidas, nunca me acostumei com elas.
Eu era apenas uma menina do interior que queria cuidar da
minha casa, dos meus filhos e do meu marido. Acho que não foi suficiente.
Depois que ele se foi, nunca mais amei ninguém. Não por falta
de propostas, apesar de tudo eu ainda continuava bonita. Não queria que outro
homem me tocasse, se aproximasse dos meus filhos.
Voltei a trabalhar no hotel, precisava me sustentar e educar
minhas crianças. Foram anos bons, mas já não sentia tanto prazer assim em estar
ali.
Dizem que reclamo demais: reclamo de quando faz sol e de
quando faz chuva. Mas tenho culpa? Quando faz sol fica muito quente e quando
faz frio, minhas juntas doem. Não é culpa minha reclamar tanto assim, o mundo é
que não é justo.
Cá estou eu, depois de 5 AVC (e os médicos dizem que sou
vitoriosa por ainda estar viva. Ora vitoriosa! Que vitória há em estar com
metade do corpo paralisado?!), sentada, olhando o mundo lá fora.
Ritinha está de namorado novo, Zezé se separou de novo, João
Grilo não para de trair a esposa e todo mundo sabe.
Fui aposentada por invalidez, não posso mais trabalhar
porque mal consigo andar, não consigo fazer mais quase nada.
Mas pelo menos meu cumê ainda sou eu que faço, esse prazer
ninguém me tira!
Meus filhos me deixaram, hoje vivo sozinha: sem marido, sem
filhos, meus netos não gostam de vir aqui, dizem que moro longe e aqui não pega
um tal de internet, sei nem o que é isso.
Hoje só me resta essa menina aqui que escreve o que eu falo para ela, mas sei que ela só está aqui porque dou umas moedinhas.
Quando eu tinha 20 anos não imaginava que o mundo pudesse
girar tão depressa, que eu deixaria passar tantas oportunidades, que eu fosse
precisar de ajuda até para colocar a roupa, que o mundo estivesse rodeado de
tanta maldade e doença e que eu estaria agora, aos 76 anos, aconselhando as
pessoas a viverem mais, a valorizarem mais. Valorizarem o simples poder subir e
descer escadas, o poder levar o garfo à boca sem derramar metade da comida,
aquela amiga que te admirava tanto, mas você não tinha paciência para
conversar, um abraço sincero que a mágoa não te deixou dar, um “eu te amo”
guardado no bolso... Foram tantos “quase” que só me resta o “se”: Se eu
tivesse feito tal coisa, se eu tivesse dito aquilo...
E o que me resta é esperar a morte vir recolher minha alma".
Teria escrito Dona Gertrudes.
Quantas Gertrudes existem por
aí?
Élida Cunha -
Especialista em Psicologia Clínica Humanista-existencial-fenomenológica;
gestalt-terapeuta (em formação);
mestranda em Psicologia - UFRN